Se Herman Melville nos ensinou a perseguir mistérios colossais nos oceanos em Moby Dick, e Júlio Verne nos conduziu nas profundezas do Nautilus em 20 Mil Léguas Submarinas, então Cabo Verde, hoje, inscreve sua própria narrativa de exploração, com tinta de ciência e papel de mar profundo. Como nas grandes epopeias do conhecimento humano, os nossos investigadores não navegam em busca de glória, mas perseguindo uma verdade implacável, em busca das respostas que só o oceano pode guardar. Tal como Ulisses, enfrentando os mares incertos e as criaturas mitológicas de sua Odisseia Submarina, eles enfrentam o desconhecido com engenho, coragem e a convicção de que, ao retornarem, trarão saberes que renovam a nossa relação com o mar. E como o Velho Santiagode Hemingway, sabem que cada incursão oceânica é uma luta digna e necessária, onde a resiliência e o respeito pelo ambiente são tão essenciais quanto a mais avançada tecnologia. Neste novo capítulo da história, a ciência é a vela que impulsiona a jornada, a cooperação internacional é o vento que nos move, e o horizonte de um futuro sustentável para Cabo Verde é a bússola que nos orienta. Em meio à literatura clássica, vemos a história revelar-se através da potência do novo, como se, a cada mergulho, reescrevêssemos antigos mitos com a linguagem da ciência, transformando-os em realidade com dados e em possibilidades para o futuro.
Neste capítulo contemporâneo da aventura científica, cientistas de Cabo Verde e colaboradores internacionais, mergulham para além do desconhecido, não movidos por ficção, mas por dados, instrumentos de alta precisão e um compromisso inabalável com o futuro sustentável do país e do planeta. O que outrora era lenda ou enredo literário, hoje se faz realidade sob as águas de Cabo Verde.
A bordo do navio de investigação oceanográfica OceanXplorer, o mais avançado do mundo, cientistas Cabo-verdianos participaram numa campanha científica sem precedentes, financiada pelas iniciativas globais OceanX e OceanQuest, dedicadas à descoberta, documentação e proteção da vida marinha. A missão “Around Africa Expedition 2025”, inserida na Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, iniciada em Moroni, Comoros, em janeiro e concluída em Las Palmas, nas Ilhas Canárias, já trouxe importantes descobertas. Destaca-se a primeira exploração de um monte submarino desconhecido ao sul do Walters Shoal, no Índico, onde foram registradas espécies inéditas. Este trabalho culminará na Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos (UNOC3), em Nice, marcando um passo significativo na promoção da ciência oceânica e na cooperação internacional.

Em Cabo Verde, a expedição avançou com a exploração dos Montes Submarinos Nola/Noroeste, em Santo Antão, entre 25 de março e 1 de abril. Durante esse período, a missão contou com a colaboração de investigadores do Instituto do Mar (IMar) e outros parceiros nacionais e internacionais*. Os trabalhos em Cabo Verde incluem o mapeamento dos ecossistemas profundos e o estudo da biodiversidade dos montes submarinos, através da utilização de tecnologias de ponta, como submersíveis tripulados, veículos operados remotamente (ROVs), sistemas de acústica avançada e laboratórios flutuantes, agora acessíveis à ciência nacional.
Adicionalmente, mais de 100 estudantes de escolas secundárias de São Vicente e Santo Antão tiveram a oportunidade de visitar o navio da expedição, proporcionando-lhes uma experiência única e direta com a ciência oceânica. Esta iniciativa visa despertar o interesse e a compreensão dos jovens sobre a importância da preservação dos oceanos e sobre as possibilidades de carreira na área científica.
O Fundo do Mar Também É Nosso: Explorando os Montes Submarinos de Cabo Verde
Bravos e curiosos, os nossos cientistas desceram em submersíveis, a uma profundidade de até mil metros abaixo da superfície oceânica, para explorar os montes submarinos. Como verdadeiros Capitães Nemo do Atlântico Tropical, navegaram lentamente no silêncio absoluto do abismo, rodeados por uma pletora de seres de profundidade e paisagens que parecem ter saído do imaginário, onde a vida floresce em formas e cores agora reais!
Essa experiência extraordinária, além de emocionante, evidencia o firme compromisso de Cabo Verde com a ciência climática e a conservação marinha. Os montes submarinos, gigantes adormecidos sob o azul profundo, são verdadeiros laboratórios naturais que guardam segredos sobre biodiversidade, circulação oceânica e impactos das mudanças climáticas. Conhecê-los é fundamental para compreendermos melhor os processos que moldam o nosso planeta e para planear políticas de desenvolvimento costeiro e pesqueiro que sejam realmente sustentáveis.

Mas afinal, o que são montes submarinos? Imagine montanhas submersas que se erguem do fundo do mar como catedrais silenciosas, esculpidas pelo tempo e pela força vulcânica. Essas estruturas, ocultas sob as águas profundas, são elevações geológicas geralmente de origem vulcânica, que não chegam à superfície e, por isso, permanecem entre os maiores enigmas do oceano. Em Cabo Verde, esses gigantes adormecidos funcionam como verdadeiros oásis de vida no azul profundo, concentrando biodiversidade e sustentando ecossistemas frágeis, exuberantes e ainda largamente inexplorados. Mais do que meras formações geológicas, são centros de regulação biogeoquímica, redutos de nutrientes e pontos estratégicos para a alimentação, reprodução e abrigo de inúmeras espécies, muitas delas com importância ecológica e comercial. Enquanto os tradicionais bancos de pesca sustentam comunidades e economias locais, montes como o Nola, permanecem envoltos em mistério, aguardando que a ciência revele os segredos que há milénios guardam sob as ondas.
Um Desafio Submerso, Mas Urgente!
As mudanças climáticas são um processo em curso, que já começa a remodelar os ecossistemas marinhos em várias partes do mundo. Em regiões como Cabo Verde, onde os montes submarinos pontuam as profundezas do oceano, é plausível que essas transformações tenham impactos significativos, embora ainda pouco compreendidos. Desde potenciais alterações na produtividade pesqueira até desequilíbrios nos ciclos biogeoquímicos, esses ambientes profundos podem ser particularmente sensíveis às mudanças em curso.
Os montes submarinos, como o Nola com seus picos duplos, representam estruturas geológicas de grande relevância científica, capazes de gerar dinâmicas ecológicas e físico-químicas únicas. Essas formações influenciam as correntes oceânicas, promovem a ressurgência de nutrientes e podem desempenhar um papel importante no sequestro de carbono e no armazenamento de calor nas camadas profundas do oceano, uma função crítica face às alterações climáticas. Sabe-se que os oceanos absorvem cerca de 89% do excesso de calor causado pelo efeito de estufa, e a água fria e profunda, abundante ao redor desses montes, tem maior capacidade de reter dióxido de carbono por longos períodos. Contudo, fenómenos como a acidificação, a desoxigenação e o aumento da temperatura da água representam ameaças crescentes a esses ecossistemas ainda pouco estudados. Explorar essas áreas constituiu uma oportunidade ímpar para aprofundar o conhecimento sobre ecossistemas marinhos pouco documentados, identificar padrões inéditos de biodiversidade e compreender melhor as interações entre espécies, contribuindo assim para novas perspetivas sobre a pesca sustentável e a conservação marinha.
Das zonas arenosas aos paredões vulcânicos, as suas encostas escondem reentrâncias e cavidades onde florescem formas de vida singulares, muitas vezes em simbiose com a própria rocha. Esses relevos não são apenas habitats! São fortalezas naturais que protegem uma biodiversidade rara, resiliente e ainda largamente desconhecida.
Pelas câmaras do veículo subaquático controlado remotamente (ROV – Remotely Operated Vehicle) com o nome de Chimaera ou ao vivo, nos submersíveis tripulados, Nadir e Neptune, as expressões eram sempre semelhantes: espanto, surpresa e admiração. Era como assistir a um espetáculo da natureza em tempo real, onde cada segundo revelava um novo mistério. Não se tratava apenas de ciência; era a descoberta de um mundo oculto, que sempre esteve ali, aguardando para ser desvendado. Nem oito horas numa posição única, imersas nesse universo submarino, foram suficientes para absorver tudo o que nos rodeava. Cada movimento das câmeras, cada imagem capturada, parecia uma introdução a algo ainda maior, mais profundo. As palavras dos colegas cientistas do IMar, capturam com precisão a magnitude dessa experiência nos submersíveis, reforçando o impacto transformador que vivenciamos e a importância da ciência na preservação desse legado.
“Ao atingir os 500 metros de profundidade, cada movimento nos conecta mais profundamente com o oceano, fazendo-nos perceber que estamos no epicentro de um laboratório natural imenso, onde o fluxo de descobertas possui o poder de reescrever nossa compreensão sobre os ecossistemas marinhos e suas interações com o equilíbrio planetário. Esta experiência, única e transformadora, oferece-nos uma janela rara para a biodiversidade profunda e seu impacto vital no futuro do nosso planeta.” Elizandro Rodrigues:
“Aos 900 metros, a magnitude desse ecossistema revela-se de maneira indescritível. A vastidão que se estende diante de nós, a complexidade das criaturas que habitam essas profundezas. Esta imersão nos faz refletir sobre a importância urgente de preservar esses habitats para as futuras gerações. E mais do que nunca, o papel de Cabo Verde nesse cenário global torna-se central. Não estamos apenas desvendando os mistérios do oceano, mas também posicionando nosso país como um guardião desses ambientes essenciais. Essa responsabilidade, além de urgente, é uma oportunidade ímpar para a ciência e para o futuro sustentável de Cabo Verde.” Péricles Silva
Por isso, explorar e monitorizar essas estruturas, como abordado na campanha científica a bordo do OceanXplorer, representa uma oportunidade para observar mudanças em tempo real e construir cenários mais informados sobre o futuro dos oceanos. Para um país insular e exposto como Cabo Verde, compreender melhor essas dinâmicas podem ser cruciais para adaptar políticas públicas e estratégias de gestão marinha à nova realidade climática.
A Cooperação Internacional como Alicerce
Como numa odisseia científica contemporânea, a inovação nasce da imaginação. Num mundo onde os desafios como as mudanças climáticas exigem respostas novas, a criatividade se torna a chave para descobrir soluções sustentáveis. No entanto, nenhuma descoberta se concretiza sem colaboração. Ao compartilharmos tecnologias e experiências, transformamos o potencial individual em força coletiva, essencial para enfrentar as questões globais que não podem ser resolvidas sozinhas.
A investigação marinha é dispendiosa e exige sistematização. As tecnologias de ponta fornecidas por navios, como o OceanXplorer, são fundamentais para a realização de estudos consistentes e de grande impacto, permitindo que Cabo Verde tenha acesso a recursos e dados que, de outra forma, seriam difíceis de obter. Além do OceanXplorer, outros navios científicos de renome internacional, como o Meteor e o Polarstern (Alemanha), o Sarmiento de Gamboa (Espanha) e o National Geographic Resolution (EUA), encontraram-se na região em operação nas águas cabo-verdianas no mesmo período da expedição. Aproveitando a presença simultânea nas imediações da costa e do monte submarino Nola, os cientistas embarcados no OceanXplores e no Meteor juntaram-se lado a lado e irão unir esforços em atividades de recolha de dados, trabalhando de forma coordenada e em comunicação constante. Esta rara confluência de plataformas de investigação sublinha o crescente papel de Cabo Verde como hotspot para a ciência oceânica e como parceiro relevante em esforços multilaterais para o conhecimento e conservação do Atlântico Tropical.
Num gesto histórico e profundamente simbólico, o Presidente José Maria Neves desceu às profundezas do oceano a bordo do submersível do navio OceanXplorer, tornando-se o primeiro chefe de Estado Cabo-Verdiano a fazê-lo. Mais do que um feito pessoal, esta experiência marcou um momento de reflexão sobre o papel estratégico de Cabo Verde no cenário da ciência oceânica global. “A ciência é essencial para tomarmos decisões acertadas”, afirmou o Presidente, partilhando que esta jornada ao fundo do mar o fez “conhecer Cabo Verde de novo, com outros olhos”, ao vislumbrar, nas sombras azul-profundo do Atlântico, “a imensidão de possibilidades” que o oceano oferece ao país. Como patrono da Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável e “Champion” da preservação do património natural e cultural de África, o Presidente Neves reforça este compromisso em nome de todo o arquipélago. Cabo Verde está a escrever uma nova página na relação entre pequenos Estados insulares e a ciência global, uma página feita de coragem política, rigor científico e visão estratégica. O Ministro do Mar, Engenheiro Jorge Santos, também esteve a bordo do OceanXplorer e durante a sua missão em Santo Antão, reconheceu o valor da missão científica em curso, destacando a extraordinária capacidade tecnológica e científica do navio, descrevendo-o como “uma plataforma de possibilidades para o avanço do conhecimento marinho” e uma oportunidade única para posicionar Cabo Verde como um parceiro estratégico na investigação oceânica internacional.
Estas visitas institucionais aos navios científicos em águas cabo-verdianas não são meros rituais protocolares, são afirmações inequívocas de um reposicionamento nacional, onde Cabo Verde assume um papel ativo na diplomacia científica e na construção de uma economia azul baseada no conhecimento. Navios como o OceanXplorer, o Meteor, o Polarstern, e outros, tornam-se pontes entre saberes, continentes e gerações.
Cabo Verde já aufere, através do IMar, uma plataforma consolidada de ciência oceanográfica, resultado de 20 anos de cooperação com a Alemanha. O Centro de Ciências Oceânicas de Mindelo (OSCM), co-gerido com o GEOMAR, é um exemplo claro do impacto positivo desta parceria duradoura, que tem contribuído significativamente para a evolução das capacidades científicas do país. Dessa colaboração frutífera, surgiu o convite do professor Doutor Martin Visbeck, antigo associado do GEOMAR, e actual CEO da Fundação OceanQuest, sediada na Universidade de Ciência e Tecnologia King Abdullah (KAUST), na Arábia Saudita, para envolver Cabo Verde com as suas próprias questões de pesquisa. Esse convite visa aproveitar as oportunidades geradas pela parceria que a OceanQuest tem mantido com a OceanX, integrando as capacidades de pesquisa da região com as mais recentes tecnologias e abordagens científicas globais. E contribui para futuras campanhas como o projeto internacional FUTURO, com início previsto para 2028. A concretização desta cooperação foi impulsionada pelo apoio da Embaixada dos Estados Unidos da América em Cabo Verde, que teve um papel central na articulação das parcerias e na viabilização da Expedição OceanX a Cabo Verde.
Essa sinergia reflete não só o potencial de Cabo Verde para se tornar um centro regional de excelência em ciência oceânica, mas também as novas possibilidades para a exploração de questões científicas locais, alinhadas com as prioridades globais, como as mudanças climáticas e a preservação da biodiversidade marinha. Através dessa colaboração, Cabo Verde estará cada vez mais capacitado para dar respostas efetivas às questões geradas pelas alterações climáticas, promovendo soluções sustentáveis que possam beneficiar a região e o planeta como um todo. Este tipo de parcerias abre portas para que Cabo Verde utilize seu posicionamento estratégico no Atlântico Tropical para ser um catalisador na geração de conhecimento sobre o oceano, promovendo um desenvolvimento sustentável baseado na ciência e inovação.
*O IMar agradece sinceramente a todos os que participaram nesta missão científica em Cabo Verde, seja a bordo, em terra ou em rede, com a colaboração fundamental de diversas instituições nacionais e internacionais, incluindo a Universidade Técnica do Atlântico (UTA), a Associação Biosfera, a Universidade de Cabo Verde (UNICV), a Inspeção geral das Pescas (IGP), o Instituto Marítimo Portuário (IMP), a Direção Nacional do Ambiente, a Universidade de Lisboa, a Universidade de Cardiff, a Universidade King Abdullah de Ciência e Tecnologia (KAUST), a Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), o Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas do Brasil (INPO), o Instituto de Biodiversidade da África do Sul (SANBI), a Parceria para a Observação Oceânica Global (POGO) e aos parceiros do navio oceanográfico METEOR/ do Centro de Pesquisa Oceânica de Kiel (GEOMAR), a Embaixada dos EUA em Cabo Verde e ao Governo de Cabo Verde, através da Presidência da República e do Ministério do Mar. Agradecemos ainda imensamente ao OceanX e à OceanQuest pelo apoio financeiro e tecnológico, essencial para a realização da expedição e por incluir Cabo Verde na sua rota científica em África.

Autoria
Yara Rodrigues, IMAR