Género e Resiliência Climática nas Pescas: Caminhos para um Setor mais Inclusivo e Sustentável 

Cabo Verde aprendeu com os Claridosos que a escrita, mais do que linguagem, é ferramenta de emancipação e construção coletiva. Hoje, cinquenta anos após a independência e num momento em que o país atinge o estatuto de rendimento médio, impõe-se uma nova fase de construção, mais justa, mais atenta às desigualdades persistentes e mais preparada para os desafios globais. As alterações climáticas já afetam de forma concreta o quotidiano das comunidades costeiras, a sustentabilidade das pescas e a segurança alimentar. Neste contexto, falar de género não é fragmentar nem seguir tendências discursivas. É, sobretudo, reconhecer desigualdades estruturais que continuam a silenciar saberes, limitar acessos e restringir a participação plena de diferentes grupos na gestão dos bens comuns. Mulheres e homens experienciam e respondem de formas distintas aos impactos das mudanças climáticas, e é nesse reconhecimento que se funda uma ação climática mais eficaz, justa e sustentável. Incorporar a perspetiva de género já não se apresenta como mera escolha política é hoje um imperativo técnico, ético e social, refletido em compromissos firmados a nível nacional e internacional. Tal como as figuras silenciosas de Dina Salústio, que atravessam o mundo sem serem plenamente reconhecidas, muitas mulheres do setor das pescas detêm saberes profundos sobre o mar, mas continuam à margem das decisões que moldam o seu futuro. 

Uma transição necessária 

No período da independência, as mulheres cabo-verdianas já participavam ativamente na resistência e na reconstrução do país, muitas vezes fora da narrativa oficial, mas no centro da ação concreta. Tal como aquelas que, durante a luta de libertação, carregaram armas, montaram escolas improvisadas e sustentaram redes de apoio.  

No setor das pescas, impõe-se hoje um olhar atento sobre a atuação das mulheres, que, apesar dos inúmeros obstáculos, desde sobrecargas laborais até políticas pouco sensíveis às realidades locais, têm vindo a afirmar-se com resiliência e criatividade. 

Embora represente cerca de 2% da atividade produtiva nacional, a pesca é estratégica para Cabo Verde, essencial para a segurança alimentar e para a geração de emprego em zonas costeiras, onde chega a representar mais de 80% da economia local. Trata-se de um setor marcado por papéis diferenciados: os homens, maioritariamente na captura; as mulheres, na transformação, distribuição e comércio do pescado. 

O setor enfrenta hoje desafios interligados, alterações climáticas, diminuição dos recursos marinhos, pressões económicas e limitações institucionais, que exigem novos modelos de gestão, mais participativos e integrados, envolvendo Estado, comunidades, sociedade civil, academia e ciência. Esses desafios, contudo, têm efeitos distintos sobre homens e mulheres, evidenciando desigualdades históricas, sobretudo no acesso a recursos, formação, representação e poder de decisão. 

Apesar dessas limitações, a presença feminina em diversas áreas relacionadas com o setor pesqueiro mantém-se firme, ainda que por vezes pouco visível. Por meio de práticas discretas, mas consistentes, as mulheres demonstram que a justiça social e ambiental exige continuidade, organização e adaptação constante. 

A sua atuação já não se limita à esfera doméstica ou à resistência informal: manifesta-se na construção de políticas públicas, nos processos de co-gestão, na produção de conhecimento, no associativismo e no empreendedorismo comunitário. São ações concretas que impulsionam a transformação do setor e reforçam a sustentabilidade da economia nacional. 

Num contexto mais literário, relembrar Orlanda Amarílis, num gesto de pertença, pioneira da ruptura da homogeneização da literatura cabo-verdiana, ensinou-nos a ver que as mulheres sustentam o silêncio do mundo com os ombros nus. Hoje, orgulhosas descendentes fazem-se escutar, por meio de planos de ordenamento, estratégias de género, diagnósticos participativos e presença ativa nas estruturas de decisão. Já temos mulheres a liderar inspeções, a ocupar conselhos administrativos e reitorias, coordenações de estratégias nacionais em diferentes ilhas, faixas etárias e trajetórias, fazendo jus ao seu contributo e à urgência de novas vozes.  Contudo, essa visibilidade na esfera pública convive, muitas vezes, com responsabilidades persistentes no espaço doméstico. O trabalho não cessa ao final do expediente; continua em tarefas ligadas à gestão da casa, ao cuidado com filhos e familiares mais velhos. Em Cabo Verde, onde prevalecem agregados monoparentais sob responsabilidade feminina, esse equilíbrio entre o profissional e o íntimo torna-se ainda mais exigente. 

Apesar dos avanços, ainda se observam dinâmicas de representação assimétricas: em muitos espaços de decisão, continuam a prevalecer lógicas e formatos pouco sensíveis à diversidade de experiências e perfis. Trata-se de heranças históricas que, gradualmente, começam a ser revistas à luz de uma sociedade em transformação. 

Para onde vamos? 

Construir resiliência climática assemelha-se a compor um poema coletivo: exige a escuta de múltiplas vozes e o entrelaçar de ritmos ecológicos, sociais, económicos e culturais que atravessam o setor das pescas. As mudanças climáticas impactam esta atividade de forma complexa e multifacetada, desde a redução da disponibilidade dos recursos pesqueiros até a intensificação das vulnerabilidades nas comunidades que deles dependem para a sua subsistência, em particular as mulheres. Alterações na temperatura e salinidade das águas, aliadas a eventos climáticos extremos como tempestades, secas prolongadas e erosão costeira, comprometem a produtividade da pesca artesanal e agravam os riscos socioeconómicos associados. 

Entre 2010 e 2020, Cabo Verde registou um aumento médio de 0,8°C na temperatura da superfície do mar. Em 2023, essa temperatura atingiu o valor recorde de 23,08°C, superando os 22,68°C de 2022 e distanciando-se da média histórica de 22,32°C registrada desde 1901. Estes aumentos térmicos, associados à variabilidade climática, representam ameaças diretas à estabilidade dos ecossistemas marinhos, à reprodução das espécies e, por consequência, à segurança alimentar das populações costeiras. 

O mais recente relatório de síntese do IPCC (2023) destaca que as comunidades costeiras, especialmente em países insulares como Cabo Verde, estão entre as mais vulneráveis e expostas aos impactos acelerados da crise climática. No arquipélago, já se observam fenómenos preocupantes, como o aquecimento das águas, a intensificação de eventos climáticos extremos, a acidificação dos oceanos e a degradação dos ecossistemas marinhos. Espécies tradicionalmente abundantes e economicamente importantes, como a garoupa e a cavala, enfrentam pressões combinadas: a sobrepesca e as alterações nos seus ciclos reprodutivos, causadas por mudanças nos padrões hidrodinâmicos. Por exemplo, a garoupa tem registrado redução no tamanho médio e na população, resultado tanto da pressão da pesca excessiva quanto do aquecimento das águas e das alterações hidrodinâmicas, afetando diretamente a subsistência das famílias que dependem da pesca artesanal. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE, 2023), a quantidade de pescado capturado sofreu uma queda significativa em 2020/2021, com a pesca artesanal e semi-industrial a registar uma redução de 37,6% em relação ao período anterior. Paralelamente, cresce a captura de exemplares subdimensionados e a redução da biomassa de espécies demersais de valor comercial. Nesse cenário, a reconstrução dos estoques pesqueiros, recomendada pelo IPCC, emerge não apenas como um imperativo ecológico, mas como uma estratégia concreta de mitigação e adaptação climática, que impacta diretamente a segurança alimentar, a saúde dos oceanos e a estabilidade socioeconômica das comunidades que deles dependem. 

A incorporação da Justiça Ambiental de género nesse contexto é essencial para garantir que as soluções propostas, como o ordenamento da pesca, a proteção de habitats costeiros e a cogestão comunitária dos recursos, sejam equitativas e eficazes. Mulheres cabo-verdianas desempenham papel estratégico na pesca de pequena escala, na transformação e comercialização do pescado, mas ainda enfrentam barreiras estruturais para participar plenamente dos processos decisórios. Como destaca o IPCC, fortalecer a resiliência local requer valorizar o conhecimento tradicional e empoderar as comunidades. Promover espaços inclusivos de governança, redistribuir meios de produção e assegurar acesso justo a financiamentos climáticos são condições para uma transição justa. Em Cabo Verde, isso pode se traduzir no fortalecimento de cooperativas femininas, no reconhecimento do trabalho invisibilizado das mulheres na cadeia de valor da pesca e na sua capacitação para liderar ações de restauração de ecossistemas costeiros, como pradarias marinhas, que atuam como barreiras naturais às mudanças climáticas e reservatórios vitais de carbono azul. 

Um passo de cada vez… 

A Estratégia de Género no Setor das Pescas 2022–2026, apresentada pelo Ministério do Mar em parceria com a FAO, constitui um passo fundamental para a construção de políticas mais inclusivas e sustentáveis. O documento reconhece os desequilíbrios existentes e propõe medidas concretas para superá-los, com destaque para o reforço das capacidades técnicas e organizacionais de mulheres e jovens, a valorização dos saberes locais e intergeracionais, a produção sistemática de dados desagregados por sexo e a promoção do trabalho digno, com acesso ampliado à proteção social. A Estratégia sublinha ainda a importância da transversalização da perspetiva de género em todo o processo de ordenamento e cogestão dos recursos pesqueiros. 

Embora representem cerca de 70% da força de trabalho no pós-captura, as mulheres continuam sub-representadas nos espaços de decisão do setor e enfrentam diversas barreiras no acesso a financiamento, formação e direitos sociais. A Estratégia aponta caminhos para transformar esse cenário, como a criação de planos de igualdade de género nas empresas do setor,  como o desenvolvido pelo ICIEG no âmbito da Iniciativa Pesca Costeira, a valorização das etapas de transformação e comercialização como atividades estratégicas e a promoção da participação paritária e efetiva das mulheres nas associações e no Conselho Nacional das Pescas. 

 Para que a transição climática no setor das pescas se realize de forma justa e efetiva, todos os instrumentos legais e programas públicos ligados ao mar devem ser revistos à luz da igualdade de género. Isso implica a inclusão de cláusulas específicas sobre equidade nos decretos e planos de ordenamento, bem como a criação e capacitação de pontos focais de género nos Ministérios e Direções com competência sobre o setor. Reconhecer o papel estruturante das mulheres e assegurar sua participação ativa e informada nos processos decisórios é essencial para fortalecer a resiliência das comunidades costeiras e promover um futuro mais equitativo para o setor das pescas em Cabo Verde. 

A força da cooperação e das redes de mulheres do mar 

A construção da resiliência climática com enfoque de género exige tecer redes, humanas, institucionais e territoriais. A criação de redes de mulheres das pescas tem sido uma das respostas mais vibrantes e eficazes nesse processo. 

Destacam-se projetos como o “Amdjer de Txeu Luta”, que atua diretamente com mulheres pescadores e peixeiras para promover autonomia económica, formação climática e justiça territorial. A partir de metodologias participativas e parcerias locais, o projeto tem ajudado a reduzir vulnerabilidades específicas e a fortalecer a capacidade de resposta comunitária às mudanças ambientais. 

A Rede MariGual, nascida em São Vicente, é um exemplo vivo dessa mudança. Criada para dar voz, visibilidade e poder de ação às mulheres do mar, a rede tem inspirado formações similares noutras ilhas como Santiago e Maio. Estes espaços são mais do que estruturas organizativas: são plataformas de fala, de escuta mútua, de reivindicação e reconstrução coletiva. De poesia, música a cursos relacionados ao género, à programação de formações em técnicas de preservação do pescado e empreendedorismo, potencializando o benefício de mulheres peixeiras para agregar valor aos seus produtos e aumentar sua autonomia financeira. 

As redes de mulheres podem ser elementos-chave na governança participativa. Um outro exemplo é a RAMAO, a Associação de Peixeiras de Mindelo mas também de Rincão. Há que continuar a apostar no seu fortalecimento como parte da abordagem territorial de resiliência. Essas redes/associações têm um papel transformador da organização coletiva feminina e contribuem para reforçar a literacia climática, a adaptação baseada em soluções locais e a inclusão de mulheres em formações técnicas, empreendedorismo e restauração de ecossistemas. Outro exemplo importante é o Movimento Eco-Feminismo Cabo Verde, criado em 2019, na cidade da Praia, por mulheres que lutam por justiça social e climática no país. 

As redes de mulheres por todo o país têm dinamizado ações em literacia climática, capacitação, mudanças de estratégias e mentalidade, intercâmbio de experiências e valorização dos produtos do mar, demonstrando que o conhecimento partilhado é também um instrumento de adaptação e resiliência. Como é o caso do projeto da Lantuna, que para evitar a apanha da areia, oferece porcos às mulheres.  

Outros projetos, implementados com apoio do GEF, FAO, União Europeia e parceiros nacionais, procuram integrar a dimensão de género em estratégias de co-gestão pesqueira, conservação marinha e desenvolvimento sustentável das cadeias de valor. 

Mas o caminho ainda é longo. Persistem desafios no acesso a financiamento, à informação e à representação institucional. Por isso, o reforço da cooperação entre instituições, comunidades e redes locais é vital.

Em tom de início… ou de continuidade lúcida 

Para avançar, é essencial garantir o acesso igualitário a espaços decisórios, formação técnica, financiamento e tecnologias adaptadas, além de fortalecer redes de apoio inter-ilhas e intergeracionais. A produção de dados desagregados por género permitirá monitorar essas transformações. 

Assim como os ecossistemas marinhos estão interligados por correntes que ultrapassam fronteiras, a construção da resiliência climática requer uma abordagem integrada que considere as conexões sociais e institucionais. O fortalecimento da inclusão promove políticas mais justas e eficazes, traduzindo a justiça social em ações concretas.

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